quinta-feira, 7 de março de 2013

Um papa e duas mulheres.

  Um papa e duas mulheres
 
Maria Clara Lucchetti Bingemer*

 
Mas, no fundo, quantos e quão importantes traços em comum! Um desejo radical e profundo as fez buscar em pessoas, ideologias e experiências várias a fonte onde pudessem saciar sua sede. Pois, enquanto Etty era uma jovem mulher extremamente sensual, com vários namorados, outros tantos admiradores e uma grande cultura e paixão pela literatura, Dorothy também se apaixonou, amou e foi amada, mas antes foi usada e abandonada. Também amava a literatura e era uma voraz leitora. Ambas, cada uma em seu momento, foram fascinadas pelo socialismo, chegando Dorothy a ser membro do Partido Comunista.
 
Ambas encontram a Deus por uma mediação humana. Para Etty, foi Julius Spier,o psicólogo discípulo de Jung, que lhe deu coragem para rezar e dirigir-se a Deus. Para Dorothy, foi a filha Tamar Therese, gerada após um aborto que ela acreditava havê-la tornado estéril para sempre. 
 
Ávidas de verdade, de absoluto, de sentido para suas vidas, ambas não hesitaram em mergulhar de cabeça nos braços desse Deus que lhes revelou seu rosto amoroso e sedutor. Etty recebeu graças e viveu experiências comparáveis às dos maiores místicos de toda a história da espiritualidade. Dorothy fez um percurso cada vez mais radical na vivência do Evangelho de Jesus Cristo na sua integridade mais plena. A conversão e a experiência de Deus deram seu fruto em ambas através de compromissos concretos.
 
Para Etty, o amor de Deus que transformou sua vida passou a ter o rosto de seu povo perseguido, dizimado e exterminado em pleno holocausto nazista. Sua maturidade espiritual chega juntamente com o desejo e a decisão de partilhar o destino massivo e coletivo do povo judeu triturado pelo nazismo. Recusa toda a possibilidade de evadir-se e escapar e vai para Auschwitz, onde morre nas câmaras de gás, em agosto de 1943, aos 29 anos. Para Dorothy, a conversão a Deus passa pela conversão aos pobres.
 
É em meio a estes e estas que a jornalista liberal e namoradeira vai sentir-se em casa, que descobrirá a verdadeira beleza. É deles e delas que fará a prioridade número 1 de sua vida longa, de 80 anos. 
 
O amor pelos pobres, inspirado pelo Evangelho de Jesus, levou Dorothy a identificar-se totalmente com os pobres, que em seu país e em seu tempo eram os migrantes, os desempregados da grande depressão dos anos 1930. E mais tarde os soldados recrutados à força para participar de guerras injustas como a do Vietnã entre outras. Vestida com a roupa doada aos indigentes, comendo como eles, Dorothy morreu em meio a eles, totalmente irmanada aos que são os preferidos de Deus segundo Jesus Cristo.
 
Propondo o exemplo dessas duas mulheres aos cristãos do mundo inteiro no umbral da Quaresma, Bento XVI mencionou sua conversão. Etty Hillesum, insatisfeita e sedenta de verdade, por fim descobriu dentro de si o poço profundo no qual estava Deus. Daí em diante a história de sua vida foi outra e outro seu destino. Dorothy Day, primeiro seduzida pelas ideologias de seu tempo, terminou por escolher a verdade e abrir-se à fé. Trilhou fielmente esse caminho em plena secularidade e em profunda comunhão com os pobres e os últimos deste mundo. Aí e somente aí, encontrou a paz e a alegria que tanto buscara.
 
Neste Dia Internacional da Mulher vale relembrar as duas mulheres que o papa — que recém-deixou a Sé de Pedro — valorizou como exemplos do que seja a metanoia que a Quaresma propõe. Para além das pertenças institucionais e eclesiásticas, a judia Etty Hillesum e a católica Dorothy Day nos sinalizam o que é ser mulher: ser aberta, habitada por um desejo profundo, disposta a abraçar maternalmente todas as dores do mundo para redimi-las com seu corpo e sua vida. Duas mulheres livres e inspiradoras, essas que Bento XVI nos deixa como presente ao despedir-se do pontificado.

*Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de vários livros como 'Um rosto para Deus' (Ed. Paulus) e 'Crônicas de cá e de lá' (editora Subiaco), que pode ser encomendado diretamente à escritora pelo e-mail – agape@puc-rio.br


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